Assunto: FW: carta a José Sócrates - uma mãe preocupada
Sr. Engº José SócratesAntes de mais, peço desculpa por não o tratar por Excelência nem porPrimeiro-Ministro, mas, para ser franca, tenho muitas dúvidas quanto aofacto de o senhor ser excelente e, de resto, o cargo de primeiro-ministroparece-me, neste momento, muito pouco dignificado.Também queria avisá-lo de antemão que esta carta vai ser longa, mas pensoque não haverá problema para si, já que você é do tempo em que o ensino doPortuguês exigia grandes e profundas leituras. Ainda pensei em escrever tudopor tópicos e com abreviaturas, mas julgo que lhe faz bem recordar o prazerde ler um texto bem escrito, com princípio, meio e fim, e que, quiçá, o façareflectir (passe a falta de modéstia).Gostaria de começar por lhe falar do 'Magalhães'. Não sobre os errosortográficos, porque a respeito disso já o seu assessor deve ter recebido ume-mail meu. Queria falar-lhe da gratuitidade, da inconsequência, daprecipitação e da leviandade com que o senhor engenheiro anunciou e pôs emprática o projecto a que chama de e-escolinha.O senhor fala em Plano Tecnológico e, de facto, eu tenho visto a tecnologia,mas ainda não vi plano nenhum. Senão, vejamos a cronologia dos factosassociados ao projecto 'Magalhães':. No princípio do mês de Agosto, o senhor engenheiro apareceu na televisão aanunciar o projecto e-escolinhas e a sua ferramenta: o portátil Magalhães.. No dia 18 de Setembro (quinta-feira) ao fim do dia, o meu filho traz namochila um papel dirigido aos encarregados de educação, com apenas quatrolinhas de texto informando que o 'Magalhães' é um projecto do Governo e que,dependendo do escalão de IRS, o seu custo pode variar entre os zero e os 50euros. Mais nada! Seguia-se um formulário com espaço para dados como nomedo aluno, nome do encarregado de educação, escola, concelho, etc. e, porfim, a oportunidade de assinalar, com uma cruzinha, se pretendemos ou nãoadquirir o 'Magalhães'.. No dia 22 de Setembro (segunda-feira), ao fim do dia, o meu filho traz umnovo papel, desta vez uma extensa carta a anunciar a visita, no diaseguinte, do primeiro-ministro para entregar os primeiros 'Magalhães' na EB1Padre Manuel de Castro. Novamente uma explicação respeitante aos escalões doIRS e ao custo dos portáteis.. No dia 23 de Setembro (terça-feira), o meu filho não traz mais papéis,traz um 'Magalhães' debaixo do braço.Ora, como é fácil de ver, tudo aconteceu num espaço de três dias úteis emque as famílias não tiveram oportunidade de obter esclarecimentos sobre afutura utilização e utilidade do 'Magalhães'. Às perguntas que colocámos àprofessora sobre o assunto, ela não soube responder. Reunião deesclarecimento, nunca houve nenhuma.Portanto, explique-me, senhor engenheiro: o que é que o seu Governo pensoupara o 'Magalhães'? Que planos tem para o integrar nas aulas? Como vaiarticular o seu uso com as matérias leccionadas? Sabe, é que 50 euros talvezseja pouco para se gastar numa ferramenta de trabalho, mas, decididamente, ena minha opinião, é demasiado para se gastar num brinquedo. Por favor,senhor engenheiro, não me obrigue a concluir que acabei de pagar por umainutilidade, um capricho seu, uma manobra de campanha eleitoral, umespectáculo de fogo de artifício do qual só sobra fumo e o fedor intoxicanteda pólvora.Seja honesto com os portugueses e admita que não tem plano nenhum. Admitaque fez tudo tão à pressa que nem teve tempo de esclarecer as escolas e osprofessores. E não venha agora dizer-me que cabe aos pais aproveitarem estamaravilhosa oportunidade que o Governo lhes deu e ensinarem os filhos alidar com as novas tecnologias. O seu projecto chama-se e-escolinha, não sechama e-familiazinha! Faça-lhe jus! Ponha a sua equipa a trabalhar,mexa-se, credibilize as suas iniciativas!Uma coisa curiosa, senhor engenheiro, é que tudo parece conspirar a seufavor nesta sua lamentável obra de empobrecimento do ensino assente emmedidas gratuitas.Há dias arrisquei-me a ver um episódio completo da série Morangos comAçúcar. Por coincidência, apanhei precisamente o primeiro episódio da novasérie que significa, na ficção, o primeiro dia de aulas daquela miudagem.Ora, nesse primeiro dia de aulas, os alunos conheceram a sua professora dematemática e o seu professor de português. As imagens sucediam-se alternandoa aula de apresentação de matemática por contraposição à de português.Enquanto a professora de matemática escrevia do quadro os pressupostos dasua metodologia - disciplina, rigor e trabalho - o professor de portuguêsescrevia no quadro os pressupostos da sua - emoção, entrega e trabalho. Ora,o que me faz espécie, senhor engenheiro, é que a personagem da professora dematemática é maldosa, agressiva e antiquada, enquanto que o professor deportuguês é um tipo moderno e bué de fixe. Então, de acordo com osprincípios do raciocínio lógico, se a professora de matemática é maldosa eagressiva e os seus pressupostos são disciplina e rigor, então a disciplinae o rigor são coisas negativas. Por outro lado, se o professor de portuguêsé bué de fixe, então os pressupostos da emoção e da entrega são perfeitos. Ede facto era o que se via. Enquanto que na aula de matemática os alunosbufavam, entediados, na aula de português sorriam, entusiasmados.Disciplina e rigor aparecem, assim, como conceitos inconciliáveis com emoçãoe entrega, e isto é a maior barbaridade que eu já vi na minha vida. Digo-oeu, senhor engenheiro, que tenho uma profissão que vive das emoções, masonde o rigor é 'obstinado', como dizem os poetas. Eu já percebi que o ensinodos dias de hoje não sabe conciliar estes dois lados do trabalho. E, não osabendo, optou por deixar de lado a disciplina e o rigor. Os professores sãoobrigados a acreditar que para se fazer um texto criativo não se pode estarpreocupado com os erros ortográficos. E que para se saber fazer uma operaçãoaritmética não se pode estar preocupado com a exactidão do seu resultado.Era o que faltava, senhor engenheiro!Agora é o momento em que o senhor engenheiro diz de si para si: mas estamulher é um Velho do Restelo, que não percebe que os tempos mudaram e que oensino tem que se adaptar a essas mudanças? Percebo, senhor engenheiro.Então não percebo? Mas acontece que o que o senhor engenheiro está a fazernão é adaptar o ensino às mudanças, você está a esvaziá-lo de sentido e depropósitos. Adaptar o ensino seria afinar as metodologias por forma atorná-las mais cativantes aos olhos de uma geração inquieta e voltada para oimediato. Mas nunca diminuir, nunca desvalorizar, nunca reduzir ao básico,nunca baixar a bitola até ao nível da mediocridade.Mas, por falar em Velho do Restelo...... Li, há dias, numa entrevista com uma professora de LiteraturaPortuguesa, que o episódio do Velho do Restelo foi excluído do estudo d'OsLusíadas. Curioso, porque este era o episódio que punha tudo em causa, quequestionava, que analisava por outra perspectiva, que é algo que as criançase adolescentes de hoje em dia estão pouco habituados a fazer. Sabemcontrariar, é certo, mas não sabem questionar. São coisas bem diferentes:contrariar tem o seu quê de gratuito; questionar tem tudo de filosófico.Para contrariar, basta bater o pé. Para questionar, é preciso pensar.Tenho pena, porque no meu tempo (que não é um tempo assim tão distante), oepisódio do Velho do Restelo, juntamente com os de Inês de Castro e da Ilhados Amores, era o que mais apaixonava e empolgava a turma. Eram trêsepisódios marcantes, que quebravam a monotonia do discurso deengrandecimento da nação e que, por isso, tinham o mérito de conseguir queos alunos tivessem curiosidade em descodificar as suas figuras de estilo edesbravar o hermetismo da linguagem. Ainda hoje me lembro exactamente daaula em que começámos a ler o episódio de Inês de castro e lembro-me daspalavras da professora Lídia, espicaçando-nos, estimulando-nos,obrigando-nos a pensar. E foi há 20 anos.Bem sei que vivemos numa era em que a imagem se sobrepõe à palavra, mas vejasó alguns versos do episódio de Inês de Castro, veja que perfeita einequívoca imagem eles compõem: 'Estavas, linda Inês, posta em sossego, De teus anos colhendo doce fruito, Naquele engano d'alma ledo e cego, Que a fortuna não deixa durar muito (...)'Feche os olhos, senhor engenheiro, vá lá, feche os olhos. Não consegue ver,perfeitamente desenhado e com uma nitidez absoluta, o rosto branco edelicado de Inês de Castro, os seus longos cabelos soltos pelas costas, ocorpo adolescente, as mãos investidas num qualquer bordado, o pensamentodistante, vagueando em delícias proibidas no leito do príncipe? Não vê osseus olhos que de vez em quando escapam às linhas do bordado e vãodemorar-se na janela, inquietos de saudade, à espera de ver D. Pedro surgira galope na linha do horizonte? E agora, se se concentrar bem, não vê umanuvem negra a pairar sobre ela, não vê o prenúncio do sangue a escorrer-lhepelos fios de cabelo? Não consegue ver tudo isto apenas nestes quatroversos?Pois eu acho estes quatro versos belíssimos, de uma simplicidadearrebatadora, de uma clareza inesperada. É poesia, senhor engenheiro, époesia! Da mais nobre, grandiosa e magnífica que temos na nossa História.Não ouse menosprezá-la. Não incite ninguém a desrespeitá-la.Bem, admito que me perdi em divagações em torno da Inês de Castro. O que euqueria mesmo era tentar perceber porque carga de água o Velho do Restelodesapareceu assim. Será precisamente por estimular a diferença de opiniões,por duvidar, por condenar? Sabe, não tarda muito, o episódio da Ilha dosAmores será também excluído dos conteúdos programáticos por 'alegado teorpornográfico' e o de Inês de Castro igualmente, por 'incitamento aoadultério e ao desrespeito pela autoridade'.Como é, senhor engenheiro? Voltamos ao tempo do 'lápix' azul?E já agora, voltando à questão do rigor e da disciplina, da entrega e daemoção: o senhor engenheiro tem ideia de quanta entrega e de quanta emoçãoLuís de Camões depôs na sua obra? E, por outro lado, o senhor engenheiroduvida da disciplina e do rigor necessários à sua concretização? Sãocentenas e centenas de páginas, em dezenas de capítulos e incontáveisestrofes com a mesma métrica, o mesmo tipo de rima, cada palavra escolhida adedo... o que implicou tudo isto senão uma carga infinita de disciplina erigor?Senhor engenheiro José Sócrates: vejo que acabo de confiar o meu filho aosistema de ensino onde o senhor montou a sua barraca de circo e não meapetece nada vê-lo transformar-se num palhaço. Bem, também não quero serinjusta consigo. A verdade é que as coisas já começaram a descarrilar háalguns anos, mas também é verdade que você está a sobrealimentar o crime,com um tirinho aqui, uma facadinha ali, uma desonestidade acolá.Lembro-me bem da época em que fiz a minha recruta como jornalista e dasmuitas vezes em que fui cobrir cerimónias e eventos em que você participava.Na altura, o senhor engenheiro era Secretário de Estado do Ambiente e andavacom a ministra Elisa Ferreira por esse Portugal fora, a inaugurar ETAR's e aselar aterros. Também o vi a plantar árvores, com as suas próprias mãos. E épor isso que me dói que agora, mais de dez anos depois, você esteja a darcabo das nossas sementes e a tornar estéreis os solos que deveriam serférteis.Sabe, é que eu tenho grandes sonhos para o meu filho. Não, não me refiro aosonho de que ele seja doutor ou engenheiro. Falo do sonho de que elerespeite as ciências, tenha apreço pelas artes, almeje a sabedoria evalorize o trabalho. Porque é isso que eu espero da escola. O resto écomigo.Acho graça agora a ouvir os professores dizerem sistematicamente aos paisque a família deve dar continuidade, em casa, ao trabalho que a escola fazcom as crianças. Bem, se assim fosse eu teria que ensinar o meu filho aatirar com cadeiras à cabeça dos outros e a escrever as redacções emlinguagem de sms. Não. Para mim, é o contrário: a escola é que deve darcontinuidade ao trabalho que eu faço com o meu filho. Acho que se anda asobrevalorizar o papel da escola. No meu tempo, a escola tinha apenas afunção de ensinar e fazia-o com competência e rigor. Mas nos dias quecorrem, em que os pais não têm tempo nem disposição para educar os filhos,exige-se à escola que forme o seu carácter e ocupe todo o seu tempo livre.Só que infelizmente ela tem cumprido muito mal esse papel.A escola do meu tempo foi uma boa escola. Hoje, toda a gente sabe que aminha geração é uma geração de empreendedores, de gente criativa e comcapacidade iniciativa, que arrisca, que aposta, que ambiciona. E não é dissoque o país precisa? Bem sei que apanhámos os bons ventos da adesão à UniãoEuropeia e dos fundos e apoios que daí advieram, mas isso por si só nãobastaria, não acha? E é de facto curioso: tirando o Marco cigano, queabandonou a escola muito cedo, e a Fatinha que andava sempre com ranhoca nonariz e tinha que tomar conta de três irmãos mais novos, todos os meuscolegas da primária fizeram alguma coisa pela vida. Até a Paulinha, que erafilha da empregada (no meu tempo dizia-se empregada e não auxiliar de acçãoeducativa, mas, curiosamente, o respeito por elas era maior), apesar de seter ficado pelo 9º ano, não descansou enquanto não abriu o seu próprio PãoQuente e a ele se dedicou com afinco e empenho. E, no entanto, levámosreguadas por não sabermos de cor as principais culturas das ex-colónias eéramos sujeitos a humilhação pública por cada erro ortográfico.Traumatizados? Huuummm... não me parece. Na verdade, senhor engenheiro,tenho um respeito e uma paixão pela escola tais que, se tivesse tempo edinheiro, passaria o resto da minha vida a estudar.Às vezes dá-me para imaginar as suas conversas com os seus filhos (nem seibem se tem um ou dois filhos...) e pergunto-me se também é válido para eleso caos que o senhor engenheiro anda a instalar por aí. Parece que estou aver o seu filho a dizer-lhe: ó pai, estou com dificuldade em resolver estesistema de três equações a três incógnitas... dás-me uma ajuda? E depois,vejo-o a si a responder com a sua voz de homilia de domingo: não faz mal,filho... sabes escrever o teu nome completo, não sabes? Então não tepreocupes, é perfeitamente suficiente...Vendo as coisas assim, não lhe parece criminoso o que você anda a fazer?E depois, custa-me que você apareça em praça pública acompanhado da suaMinistra da Educação, que anda sempre com aquele ar de infeliz, de quemcomeu e não gostou, ambos com o discurso hipócrita do mérito dos professorese do sucesso dos alunos, apoiados em estatísticas cuja real interpretação, àluz das mudanças que você operou, nos apresenta uma monstruosa obscenidade.Ofende-me, sabe? Ofende-me por me tomar por estúpida.Aliás, a sua Ministra da Educação é uma das figuras mais desconcertantes queeu já vi na minha vida. De cada vez que ela fala, tenho a sensação que estáa orar na missa de sétimo dia do sistema de ensino e que o que os seus olhosverdadeiramente dizem aos pais deste Portugal é apenas 'os meus sentidospêsames'.Não me pesa a consciência por estar a escrever-lhe esta carta. Sabe, é queeu não votei em si para primeiro-ministro, portanto estou à vontade. Euvotei em branco. Mas, alto lá! Antes que você peça ao seu assessor para lhefazer um discurso sobre o afastamento dos jovens da política, lembre-se,senhor engenheiro: o voto em branco não é o voto da indiferença, é o voto dainsatisfação! Mas, porque vos é conveniente, o voto em branco écontabilizado, indiscriminadamente, com o voto nulo, que é aquele em que osalienados desenham macaquinhos e escrevem obscenidades.Você, senhor engenheiro, está a arriscar-se demasiado. Portugal está prestesa marcar-lhe uma falta a vermelho no livro de ponto. Ah... espere lá... asfaltas a vermelho acabaram... agora já não há castigos...Bem, não me vou estender mais, até porque já estou cansada de repetir'senhor engenheiro para cá', 'senhor engenheiro para lá'. É que o meu maridotambém é engenheiro e tenho receio de lhe ganhar cisma.Esta carta não chegará até si. Vou partilhá-la apenas e só com os meusE-leitores (sim, sim, eu também tenho os meus eleitores) e talvez só porcausa disso eu já consiga hoje dormir melhor. Quanto a si, tenho dúvidas.Para terminar, tenho um enorme prazer em dedicar-lhe, aqui, uma estrofe doepisódio do Velho do Restelo. Para que não caia no esquecimento. Nem no seu,nem no nosso. 'A que novos desastres determinas De levar estes Reinos e esta gente? Que perigos, que mortes lhe destinas, Debaixo dalgum nome preminente? Que promessas de reinos e de minas De ouro, que lhe farás tão facilmente? Que famas lhe prometerás? Que histórias? Que triunfos? Que palmas? Que vitórias? 'Atenciosamente e ao abrigo do artigo nº 37 da Constituição da RepúblicaPortuguesa,Uma mãe preocupada

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