Os «Brocas» e a genealogia de Camilo Castelo Branco
Camilo Castelo Branco |
Quando Camilo pretendeu escrever o romance
"Os Brocas" em que
passaria toda a sua família, começou a traçar esquemas da árvore genealógica
dos ascendentes e descendentes.
No anterrosto
de um exemplar de "Le crime et la folie», de H. Maudsley, por exemplo, esboçou o
plano da sua malfadada família, dando Rita
Preciosa como doida e filha de Tereza
Inácia também doida, e cita-lhe duas filhas com tara idêntica.
Referindo-se
a Simão Botelho, apresenta-o como
homicida, filho e neto de homicidas.
Alude a Manuel Botelho, atribuindo-lhe ausência
de senso moral, à face das teorias do autorizado professor Maudsley.
Os filhos
do romancista são classificados como nascidos duma senhora epilética, tendo Jorge a herança da bisavó e da trisavó,
e Nuno a tara herdada do avô Manuel.
A opinião
formulada acerca de Nuno é reforçada
com a nota: "A ausência de senso
moral é a hereditariedade da demência».
Sempre que
se lhe oferecia ocasião, Camilo citava a desgraça que perseguia inexoravelmente
os seus ascendentes.
"... recordo-me eu - diz ele nas
"Memórias do Cárcere" - que
fiquei ouvindo de minha tia a história de meu avô assassinado, de meu tio morto
no degredo, de meu pai levado pela demência a uma congestão cerebral.»
Com
efeito, o pai de Camilo, um modesto empregado dos correios em Vila Real de Trás-os-Montes, morreu
doido.
E Camilo
diz ainda nas "Memórias do Cárcere", que a sua tia, decrépita e
cadavérica, lhe afirmara que “era
necessário ser desgraçado para não contradizer os fados da família."
O livro
"Le crime et la folie" estava sendo o melhor guia para a
urdidura de "Os Brocas".
Após o
apontamento da árvore genealógica, Camilo faz uma multiplicação que nos dá a
ideia da extensão do romance. E verificamos que 16 folhas de 16 dão uma
totalidade de 256 páginas.
A genealogia dos «Brocas» traçada por Camilo |
Mais adiante,
Camilo anota a passagem sobre idiotia e imbecilidade, escrevendo simplesmente:
"o caso de J.", isto é o desgraçado
caso do seu querido filho Jorge.
Nessa
passagem do ilustre professor são citados casos em que a "insuficiência geral de inteligência coincide
com um desenvolvimento singular dessa mesma faculdade numa direcção especial",
e mostra, por exemplo, "imbecis
salientando uma extraordinária memória de pormenores, tais como datas, nomes e
números, recordando e relatando com a maior facilidade e uma fidelidade
extremas as particularidades exactas de acontecimentos distantes, ou
manifestando extraordinárias aptidões mecânicas, ou ainda patenteando uma
grande astúcia que poderia parecer pouco compatível com a sua fraqueza de
espírito geral.”
Nisto
classificava Camilo o caso do seu desventurado filho Jorge.
Triste
revelação a sua, aliás manifestada no atestado do prof. dr. Ricardo Jorge, passado no Porto em 2 de Agosto de 1886,
para a admissão do alienado no hospital
do Conde Ferreira.
Nesse
documento diz-se que Jorge Castelo Branco
"aprendeu a ler e a escrever e
chegou mesmo a iniciar os estudos preparatórios que não pode prosseguir por
falta de capacidade, sendo para notar que, sozinho em casa adquiriu razoáveis
conhecimentos de língua latina, entregando-se também ao desenho com certa
habilidade."
"O pai, homem de talento - refere ainda o
documento citado - é um nevropata e um
sifilítico. O avó paterno foi um alienado, assim como dois tios."
Pelo
visto, o projectado romance "Os Brocas" seria alicerçado
numa forte base cientifica, constituindo um aglomerado de atenuantes às faltas
gravíssimas dos Correias Botelhos.
Ficaria
sendo uma espécie de reabilitação dos filhos do romancista, uma espécie de explicação
cabal da razão da loucura do Jorge e da ausência de senso moral do Nuno, sem
esquecer que a D. Ana Plácido era
uma "senhora epiléptica".
Ana Plácido |
Afinal, o
livro «Os Brocas» nunca apareceu, embora tivesse sido anunciado em gordas
parangonas pelo editor portuense Ernesto
Chardron em quási todas as suas publicações de 1883.
Dois anos
depois, o romancista publicava na "Boémia do Espirito" a seguinte alusão
ao seu plano que falhara:
"À portaria do convento augustiniano da Piedade em Santarém, chegou em 1762 um
homem na flor dos anos a pedir o hábito. Mostrou pelos seus documentos
chamar-se João Correia Botelho, e
ser de Vila Real de Trás-os-Montes. Viera
de longe propelido por uma grande catástrofe. A profissão era o acto final duma
tragédia que eu escreveria frouxamente na minha idade glacial, se tivesse vida
para urdir o romance intitulado "Os
Brocas".
Como a história é enredada e de longas
complicações, nem ainda muito em escorço posso antecipá-la. Se eu morrer, como
é de esperar da medicina, com malograda esperança de escrever esse livro, algum
de meus sobrinhos encontrará nos meus papéis os elementos orgânicos duma
história curiosa e recreativa.”
Foram
decorrendo los meses e os anos.
Entretanto,
o velho José de Almeida Garrett que que
provocara a tragédia da rua das Flores,
seduzindo a esposa de Vieira de Castro,
aparecia por vezes, à porta de Camilo a insultá-lo com a sua voz trovejante: -
"Saia cá para fora, pulha! em que é
és tu mais do que eu? Tive uma falta na vida, mas não vivo à custa da mulher da
minha vítima! Olhas que estás debaixo das telhas do Pinheiro Alves que
atraiçoaste. Sai cá para fora, se és capaz!...»
O Garrett,
tendo expiado os seus crimes com uma resignação de beneditino, não podia
perdoar os insultos com que Camilo o crivara na entusiástica defesa que fizera
do seu amigo e cúmplice Vieira de Castro.
E Camilo
cego e desolado, ia sentindo a alma arrefecer-lhe a pouco e pouco.
No dia 1
de Junho de 1890, o genial romancista, num acto de desespero provocado pela
cegueira, pôs termo à existência."
Gomes
Monteiro
Fonte:
"Ilustração", nº251 - 1936
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Placa existente na frontaria da Casa dos Brocas (Solar da família de Camilo Castelo Branco, em Vila Real) |