Fojo do Lobo em Samardã - Vila Real
“Eu é que conheço a Samardã, desde os meus onze anos. Está situada na província Transmontana, entre as serras do Mesio e do Alvão.
Nas noites nevadas, as alcateias dos lobos descem à aldeia e cevam a sua fome nos rebanhos, se vingam descancelar as portas dos currais; à míngua de ovelhas, comem um burro vadio ou dois, consoante a necessidade.
Se não topam alimária, uivam lugubremente, e
embrenham-se nas gargantas da serra, iludindo a fome com raposas ou gatos
bravos marasmados pelo frio.
Foi ali que eu me familiarizei com as bestas-feras;
ainda assim, topei-as depois, cá em baixo, nos matagais das cidades, tais e
tantas que me eriçaram os cabelos.
Na vertente da montanha que dominava a Samardã, havia
um fojo – uma cerca de muro tosco de calhaus a esmo onde se expunha à
voracidade do lobo uma ovelha tinhosa.
O lobo, engodado pelos balidos da ovelha, vinha de
longe, derreado, rente com os fraguedos, de orelha fita e o focinho a farejar.
Assim que dava tento da presa, arrojava-se de um pincho para o cerrado.
A rês expedia os derradeiros berros fugindo e furtando
as voltas ao lobo que, ao terceiro pulo, lhe cravava os dentes no pescoço, e
atirava com ela escabujando sobre o espinhaço; porém, transpor de salto o muro
era-lhe impossível, porque a altura interior fazia o dobro da externa.
A fera provavelmente compreendia então que fora
lograda; mas em vez de largar a presa, e aliviar-se a carga, para tentar mais
escoteira o salto, a estúpida sentava-se sobre a ovelha e, depois de a esfolar,
comia-a.
Presenciei duas vezes esta carnagem em que eu – animal
racional – levava vantagem ao lobo tão-somente em comer a ovelha assada no
forno com arroz.
De uma dessas vezes, pus sobre uns sargaços a Arte do
padre António Pereira, da qual eu andava decorando todo o latim que esqueci;
marinhei com a minha clavina pela parede por onde saltara a fera, e, posto às
cavaleiras do muro, gastei a pólvora e chumbo que levava granizando o lobo, que
raivava dentro do fojo atirando-se contra os ângulos aspérrimos do muro.
Fonte (1) |
Desci para deixar morrer o lobo sossegadamente e livre
da minha presença odiosa.
Antes de me retirar, espreitei-o por entre a juntura
de duas pedras. Andava ele passeando na circunferência do fojo com uns ares
burgueses e sadios de um sujeito que faz o quilo de meia ovelha.
Depois, sentou-se à beira da restante metade da rês;
e, quando eu cuidava que ele ia morrer ao pé da vítima, acabou de a comer.
É forçoso que eu não tenha algum amor-próprio para
confessar que lhe não meti um só graeiro de cinco tiros que lhe desfechei.
As minhas balas de chumbo naquele tempo eram
inofensivas como as balas de papel com que hoje assanho os colmilhos de outras
bestas-feras.
Este conto veio a propósito da Samardã,
que distava um quarto de légua da aldeia onde passei os primeiros e únicos
felizes anos da minha mocidade.”
Camilo Castelo Branco, em “O
degredado”, in Novelas no Minho. Edições Caixotim, 2006, pp.364-5