Vila Real vista por Manuel Monteiro, em 1911
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Vista geral de Vila Real |
Não é, portanto, sem um desabafo de íntimo prazer que se
chega à estação de Vila Real, situada no
topo duma ampla avenida moderna
prolongamento do eixo da ponte metálica que a liga à histórica
e aristocrática vila, a cavaleiro do Corgo e recortando-se no fundo majestoso
das serranias.
Do alto da ponte é surpreendente o que
a vista descobre:
-
a um lado, uma vasta bacia de culturas, um cenário
idílico, verdejante, suavemente cavado e matizado,
que vai da veiga às colinas e das colinas às serras;
- pelo outro, o leito fluvial estrangulado no estreitamento abrupto
da rocha, despenhando-se o Corgo, após um deslisar remansoso, em
referventes cachoeiras no precipício.
A cidade, que se obstina em ser vila,
é uma das mais típicas da terra portuguesa.
De facto, ao longo das ruas sem alinhamento pode
fazer-se o estudo quase completo, desde o século XVI; da varanda, desse impressivo
detalhe da arquitetura urbana; exemplares há que comunicam com o exterior, que
alinham com a frontaria ou dela ressaltam, sobre cachorros, que a tomam toda ou
apenas parte e que se fecham com grade de balaústres de pedra, de ferro
forjado, de madeira vazada e com arrebiques, ou só com gelosia encanastrada à maneira
freirática, ou com esta e alçapões de tabua apainelada.
Estes episódios
arquiteturais, defendidos sempre pelo distendido beiral do telhado, por tal
maneira revelam a índole, o temperamento e os hábitos do povo a quem servem,
que ao contemplá-los tem-se a sugestão duma leitura de outras tantas páginas dum
livro de flagrante demopsicologia.
Além deles outros
se manifestam, como as rotulas e as adufas das janelas que, por vezes, são de ângulo,
e dois frontispícios de casas manuelinas.
Dignos de nota
e visita
- os templos de
Santa Clara, n'uma renascença abastardada e moribunda, com os seus adoráveis
azulejos do século XVII fingindo pedras preciosas,
- o de S. Pedro com a talha das abóbadas e azulejo de tapete e cercadura daquela
data;
- o de Santo António com o seu alpendre e o seu revestimento cerâmico datado,
- o Pioledo
dum gótico popular cheio de encanto
- e o mosteiro de S. Domingos.
Este provém do
século XV e é duma fábrica ogival, com remembers românicos, muito sóbria,
conforme as ensanchas das bolsas que a levaram a efeito.
Compõe-se de três naves, a central com clerestory, transepto e capela-mor, sendo os capitéis dos arcos respectivos modelados num naturalismo adorável, e ingenuamente afeiçoado.
Passada a vista pelos dois túmulos ogivais dos bas-cotés e pelo pórtico duma
estrita compostura, está feito o exame à igreja dominicana.
Cá fora, o que
se indica em último lugar ao visitante são os panoramas do Calvário e o
do Cemitério.
Este fica no
extremo do promontório em que assenta Vila Real e ocupa o sítio da
originária povoação medieva encravando-se entre o Corgo e o Cabril.
Do passeio, que
o contorna, o olhar foge duma banda pelo formoso valezito deste riacho
demarcado ao fim pelo firme cubo defensivo da Meia Idade, que é a torre de Quintela, e na outra cai desabaladamente para a profundíssima corrente
do Corgo, rugindo nas quedas sucessivas do Agueirinho.
O rio
comprime-se entre pendores de horrendas fragas amarelecidas e agressivas
galgando num impressionante arrepio de linhas dentadas que dividem estreitas pregas
e vincos, onde o homem se arriscou para fazer socalcos e neles reunir e fixar
alguns punhados de terra vegetal, que penachos de pinheiros e fruteiras e nesgas de vinha, seara e horta esmaltam
de verde...
Na margem dalém,
numa ruga da vertente, enfileira-se desde o sopé quási até às culminâncias da
linha férrea um numeroso e disciplinado bando de moinhos - os moinhos da Peneda
- movidos pelo mesmo jacto de agua, espumosa e branca, resvalando, de rodízio a
rodízio, por uma negra e puída estria até baralhar-se com o rio.
Dum dos
singelos casarelhos tristonhos e amesendados nas anfractuosidades do barranco
eleva-se uma voz modulada pelo vento:
...mais alta
vai a ventura
que Deus tem para nos dar.
Mas o vento que a traz é o mesmo que a leva e a trova desfaz-se e vagamente se perde nos longes arrastando o espírito preso à expressão fatalista e dolente que resume o sentido e inditoso queixume duma raça...
Fonte: "O Douro", Manuel Monteiro, 1911 (texto editado e adaptado)