Oração ao Verbo | Os vitrais da Sé de Vila Real
“ (…) Permitam-me que faça a leitura da oração estética de João Vieira, sem me deter na comunhão das cores, expressa nos Vitrais,
pedindo-vos que me acompanhem.
Antes, a palavra a João Vieira, seu autor: «quando li pela primeira vez o Evangelho Segundo São João tomei-o, antes de mais, por um belíssimo trabalho poético.
Só isso era o suficiente para o tornar sagrado.
Ao ser-me proposta a realização destes vitrais, e depois de uma visita à bela Sé de Vila Real, foi de modo muito natural que me vieram à memória as leituras do Evangelho. (...)
A minha escrita (desenho, pintura) é difícil de ler. Mas Deus, que escreve direito por linhas (letras) tortas, talvez me ajude nesta humilde imitação.
Espero que sendo os meus textos, tal como os de São João, difíceis de ler, sejam também
como os dele, fáceis de amar». (1)
Vamos lê-las, com amor, começando a nossa
oração ao Verbo pelo presbitério.
Nos janelões da capela-mor, vemos em tons, que lembram manuscritos antigos, os nomes, em latim, dos
doze apóstolos, que iniciaram a sementeira do Verbo pelos quatro cantos do mundo: Vos estis sal terrae: Vos
estis lux mundi. (2)
Sobre o arco do presbitério, vemos uma cruz de
pontas, de simbolismos vários: perfeição, estrela de David, estrela dos Reis
Magos, entre outros.
No transepto do lado sul, uma referência aos
dominicanos, pregadores e «guardiões do Verbo».
As frestas das naves laterais são
dedicadas aos evangelistas: nas frestas do lado sul, lemos, segundo esta ordem,
para quem entra na Sé: Mateus, Marcos e
Lucas, e, no correr das frestas laterais do lado norte, loh-an-nes.
Nas alturas, temos a poesia
filosófica do Verbo do prólogo do Evangelho Segundo S. João nas frestas, três
de cada lado, da nave central: No princípio
era o Verbo e o Verbo (do lado esquerdo, para quem entra na Sé) era
com Deus, e o verbo
era Deus (do lado direito). (3)
Nas duas frestas, uma de cada lado, da parede da entrada na Sé, vemos o anagrama de Cristo, feito a partir das duas primeiras
letras - X e P - sobrepostas, da
palavra Cristo, em
grego - XPISTOS
(o ungido).
Agora, a rosácea.
Nela está o essencial da teologia cristã: a Criação, a
Encarnação e a Redenção, e o livro
que a inspira o Apocalipse.
Livro atualíssimo. Vivemos tempos apocalípticos. Quem
não vê os «ominosos
sinais dos tempos que sobre nós pairam», conforme as palavras luminosas do
sábio Professor Vítor Aguiar e
Silva? A quem peço que me perdoe, duplamente: pela quebra do sigilo epistolar e
pelo plágio.
Babilónia gerou mais Babilónia. Besta mais Besta. Cativeiro
mais Cativeiro.
Os sintomas estão aí - os escaparates estão cheios de literatura apocalíptica: códigos,
selos, cifras, sétimos, segredos -, mas não a cura.
João teve a coragem de, não só apontar o dedo, como dizer o
número da Besta - «Aqui há sabedoria. Quem
tem inteligência, calcule o número da besta, porque é número de homem; e o
número dela é seiscentos e sessenta e seis». (4)
E, por ter visto no antes o depois, anunciou: «Caiu, caiu a grande Babilónia». (5)
João não foi só espera, ritual e visão. Foi, também, caminhar, escrita e ação.
O mistério?
João o desvendou: «A
grande
Babilónia, a mãe das fornicações e das
abominações da Terra». (6)
Assim saibamos ler a metáfora.
A Poesia de João não é histórica, mas de todos os tempos: de hoje, de ontem e de
amanhã. De hoje, principalmente, porque
nele estamos.
A rosácea, rotunda como o mundo e envolta de um azul de
infinito, fala-nos da Criação e a arte de João Vieira o diz através da sementeira de letras de
semeadura certa.
Nela lemos, no sentido do
movimento dos ponteiros do relógio - porque,
conforme interpretação de D. Joaquim Gonçalves, o mundo não é só
Criação, mas também História, «sucessão no tempo» (7) -, a seguinte passagem do
Apocalipse de João: Eu sou o alfa
e o ómega, o princípio e o fim. (8)
Por serem símbolo do mistério pascal, o papa Bento XVI iniciou este ano [2008] o serviço religioso Pascal, no átrio da basílica de São
Pedro, gravando as letras gregas alfa e ómega numa grande vela.
Um pormenor, ainda, sobre a rosácea: as letras e-u-s-o-u, colocadas antes do nascimento
das horas, precedem o tempo, vivendo na
eternidade.
A rosácea é, também, Encarnação e Redenção: a cruz,
com os seus quatro braços, abraça o mundo,
redimindo-o através da encarnação, morte e ressurreição do Verbo, feito Pessoa.
No quadrado central, ladeado por doze rectângulos,
representando os doze apóstolos, vemos as duas letras gregas alfa e ómega,
em maiúsculas, de tal modo desenhadas que o ómega, vestido de
um violeta divino, se transmuta em rosto de
Cristo, dizendo-nos que ele é o princípio e o fim, a salvação da efemeridade e da transitoriedade da vida e da
História, ou segundo as palavras de Lucas: Coelum et terra Eransibunt, verba autem mea non transibunt (Passarão o céu e a terra, mas as minhas
palavras não passarão).(9)
Termino como terminei o meu texto sobre os Vitrais da Sé de
Vila Real, em 14 de Abril de 2003, fez, há quatro dias, cinco anos: Os Vitrais de João Vieira
transmutaram a Sé: ao esforço fideísta do arco gótico arcaizante,
amarrado, ainda, a pesada estrutura românica, e
à austeridade e à penumbra medievais, apesar da exuberância do barroco do presbitério, junta-se, agora, o da
inteligibilidade e a alegria da boa-nova, trazidas em letras de luz, e a Sé, qual nau-nave, eleva-se tirada pela
rosácea e frestas pandas de Verbo, cores e Luz.”
António de Azevedo
Vila Real, 18 de Abril de 2008
In “Património Religioso e Espaços Sagrados”, 2008 – Dia Internacional
dos Monumentos e Sítios (texto editado) Imagem: DRCN
Notas:
(1) João Videira, Vitrais da Igreja de São Domingos – Sé de Vila Real – Lisboa, IPPAR, Abril 2003, pp. 61-62
(2) Mateus 5, 13 e 14
(3) João 1, 1
(4) Apoc. 13, 18
(5) Apoc. 18, 2
(6) Apoc. 17, 5
(7) João Vieira, p.22
(8) Apoc. 1, 8
(9) Lucas 21, 33