A lenda da construção da Torre de Quintela

Torre de Quintela - Vila Marim - Vila Real (1908)

Venha agora a lenda (dois traços, apenas) que recolhemos directamente dos labregos que por ali demoram no antigo feudo do Senhor de Quintela, e muito provavelmente descendentes dos seus servos (ou tais como eram considerados, conforme o que sabemos pelos estudos de Herculano).

O caso da edificação daquela torre, passou-se assim.

Um rei nosso, muito antigo, agradecido aos serviços dum guerreiro, fê-lo donatário ou deu-lhe o senhorio de todas as terras que avistasse do alto da Campeã (na Serra do Marão, a poucos quilómetros de Quintela). Aí se estabeleceu um povoado (colónia).

Mais tarde, muitos moios de anos (60, cada moio), veio o senhorio daquelas terras a dar na posse duma mulher, que o povo alcunhou de D. Loba, pela avidez, pois que exigia que todos os gados e rebanhos pastantes nas suas terras, fossem reconhecidos como seus, e outros vexames semelhantes, deixando aos pobres servos o que não podia deixar de ser.

Os povos, então, escandalizados de tanta usura, queixaram-se ao Rei, e o Rei deu-lhes razão.

Para correcção, pois, à sua avareza, o Rei ordenou à senhoria que apeasse a torre do alto da Campeã e a levantasse, de novo, no lugar de Quintela, que é sítio fundeiro. 

Assim, o território senhoria, que se entendia por léguas a perder de vista, passou a confinar-se a um trato de terreno que o olhar facilmente abrange.

E assim D. Loba foi lograda, para castigo da sua insaciabilidade.

Muito conceituosa e bem imaginada, não há dúvida, mas pura lenda, como cremos, esta do transporte dum monumento de tal solidez e vulto.

Houve efectivamente (mesmo citado) outra torre no alto da Campeã, lugar de Arrabães, mas propriedade de outra família (Menezes).

Ainda uma terceira é memoriada no mesmo documento, a de S. Payo, na freguesia de Mouçós, pertencente à casa de Resende. Não resta vestígios de ambas.

No lugar de Agarez, foi-nos indicado o terreiro onde o povo do lugar diz ter sido alçada uma torre. Nada resta, também.

A Torre de Quintela não me inclino a que seja (consoante alguém me informou) a «Torre de D. Chama, castelo que existe ainda, perto da casa dos Távoras, em Lordelo» («Anátema»).

A descrição e a lenda que se leem no romance de Camilo não se ajustam àquela outra.

***

Como quem guarda a farsa para fecho do espetáculo, assim tínhamos planeado terminar com alguma nota aproveitável, das várias notas picarescas que os camponeses nos contaram sobre o tributo de servidão.

Mas vemos agora que o assunto, sendo de molde para as conversas desenfadadamente prazenteiras à lareira dos casais, em hora de magusto, assentados os velhos no escano, é deveras escabrosa para aqui.

Fialho de Almeida quis usas nos «Gatos» das liberdades de Gil Vicente, e não lho levaram a bem.

Pudor... moderno!

Mas, continuemos.

Sabemos todos pela História, e de há séculos, a disposição que o povo patenteou sempre que pôde em receber com vaias e sarcasmos os direitos que se arrogavam Clero e Nobreza (e o mesmo é dizer também os senhores da propriedade).

Chegados os tempos modernos, entrando já a raiar a aurora da liberdade política e económica, a nova população do antigo feudo de Quintela começou a negar-se ao pagamento do sinal de servidão.

Uma das últimas cobranças tentada ainda pelo sr. fidalgo, para mostrar desse modo que não renunciava nem desistia dos seus direitos tradicionais, foi tratada pelo povo com zombarias tão humilhantes para o importuno senhorio, que valeu ao caso (frisam os camponeses) o bom humor do cobrador, nas réplicas e ajustes, tendo artes até de tirar proveito da troça.

Um caso apenas:

O cobrador, já seguido dos rapazes mais galhofeiros do sítio, parou à porta da casa dum dos que figuravam na relação que ia consultando, e depois de o instruir sobre o motivo da visita, concluiu:

- Então, que sinal quer você dar, seu F...?

- Um par de chavelhos.

- Está dito; mas... cheios de de azeite.

Averbou e seguiu caminho.

***

A propósito do assunto desta notícia, temos ouvido afirmar a existência de outras torres semelhantes na forma e na intenção.

Lembra-nos, por exemplo, duma no Marco de Canaveses, o que nos foi noticiado por pessoa ilustrada.

Certo é que, até há três anos (que vimos a Torre de Quintela) eram-nos desconhecidos tais monumentos em chão português.

E como pode ser que tal ignorância atinja mais alguém, daqueles que não são indiferentes a velharias, razão por que trazemos aqui mais esta recordação de Vila Real, a juntar às duas já publicadas nesta mesma revista.

Henrique das Neves

"Ocidente" - nº748. 10 de Outubro de 1899 (texto editado e adaptado)

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