Feira de São Pedro ou Feira dos Pucarinhos - 28 e 29 de Junho - Vila Real
Feira de São Pedro ou Feira dos Pucarinhos
28 e 29 de Junho |
Vila Real
Pelo São Pedro, é
de costume realizar-se em Vila Real, na província de Trás-os-Montes, uma
curiosa «feira», tradicionalmente chamada «feira dos pucarinhos».
Tal feira é uma
exposição de trabalhos regionais, não só de olaria, mas também de tecidos de linho; – aparecendo ainda
à venda mantas, cobertas de cama, e coisas assim. Tudo isto proveniente de
incansável indústria caseira, que ali, embora rústica, se revela artística na
ideação e na execução.
É, porém, de
olaria que, embora muito ao de leve, nestas abreviadas notas se falará agora.
* * *
Logo
pela manhãzinha, na véspera de São Pedro, vão chegando cestos e cestos de louça
de barro, pelo ordinário negra, à Rua Central, em frente à capela do nome
daquele santo, [efectivamente, a Capela tem o nome de Capela de S. Pedro e
S. Paulo, mais conhecida pela designação de Capela Nova, cuja traça é atribuída
a Nicolau Nasoni] (*) – que é onde a «feira» se efectua.
Esta
louça vem hoje de Bisalhães, povoaçãozita perto de Vila Real, mas dantes o
fabrico estendia-se a Lordelo.
Se fores a Bisalhães,
à terra dos paneleiros,
dá por lá uma vista de olhos
à sombra dos castanheiros.
(A.C. Pires de Lima,
Cancioneiro Popular de Vila Real, Porto 1928, pág. 208)
A louça de Bisalhães
É fabricada por
processos primitivos, mas com rara habilidade e perfeição. Usam a velha
roda-de-oleiro, a que imprimem o movimento com as mãos. Enquanto a roda gira
por si, o oleiro trabalha a massa de barro. Quando tal não pode fazer, por o
objecto ser grande – talha alta, por exemplo -, é um que trabalha, e outro que
dá movimento à roda.
Para
ornamentar a louça, servem-se, geralmente, de um gôgo (pedra rolada dos rios e
ribeiros). A louça é assim – gogada. As partes por onde o gôgo passou ficam,
após a cozedura, diferenciadamente polidas, brilhantes. Mas, para obter certos
efeitos, usam pauzinhos, cartuchos de bala, meias canas, etc. Os ornatos são
coisa, em regra, muito simples em rude.
A
louça é cozida em fornos crateriformes. O enegrecimento do barro é feito pelo
fumo, por combustão incompleta. Duas horas de forno bastam para o barro ficar
negro.
Vê-se,
pois, como é primitiva a fabricação desta louça. Apesar disso, e apesar da
falta de educação artística dos oleiros, a louça é excelente de trabalho e
aspecto.
As
peças que, por qualquer motivo, ficam imperfeitas, ou menos macias por o barro
não ter sido bem peneirado, constituem a louça churra, isto é, «ordinária».
Na
Revista Lusitana, XI, 306, Gomes Pereira registou: «churro,
negro, preto. Ex: «louça churra»
…
Churro
quer dizer «ordinário», «grosseiro», «de qualidade inferior»: «louça churra»;
«relão (sêmea) churro»; «vinho churro» (não fino, ordinário) …
É
notável, pelas suas óptimas qualidades, o barro de Parada de Cunhos, freguesia
a uns dois quilómetros de Vila Real.
*
* *
A Feira de São Pedro em Vila
Real
Chegados
ao local da «feira», os louceiros tratam de ocupar os sítios que lhes
pertencem.
Cada
um tem o seu lugar tradicionalmente marcado, desde muito. Dias antes da
«feira», porém, a fim de que algum feirante não julgue livre qualquer dos
lugares, por ausência do respectivo proprietário, e lho vá depois ocupar, os
louceiros acorrem à Rua Central e, no chão, com tinta, zarcão ou pós dos
sapatos, marcam os seus lugares. Assim mantêm a posse deles.
No
espaço que a cada louceiro compete, vai ele, tanto que chega em véspera de São
Pedro, estendendo com seu vagar a louça, – munido, por causa das traiçoeiras
arremetidas do rapazio, de um varapau ou de um simples vime.
Ao
redor da rua, que tem seu ar de «largo», vão-se entretanto dispondo as tendas
de biscoitos da «Teixeira», refrescos, e o mais com que na «feira» se faz
negócio.
O
mercado tem começo já neste dia, 28 de Junho.
À
noite, cada vendedor de louça acastela as suas peças, cobre o monte com uma
velha manta, e queda-se ao lado, semi-dormindo, semi-vigiando.
Enquanto
se não faz tarde – noite dentro, aí até às duas horas – pelos carreiros abertos
no Largo, por entre as pilhas de louça, os festeiros passarinham, folgam, –
namoram.
A
maior e melhor parte de tais festas cabe sempre ao amor…
No
dia seguinte – o ruidoso dia de São Pedro -, muito cedo ainda, os vendedores
estendem outra vez a louça, como na véspera.
É
este o verdadeiro «dia de feira».
O
povoléu é denso; a animação é viva, embora sem a viveza de uma colorida
multidão minhota.
Os “pucarinhos”
Ao
findar a tarde, já não há «pucarinhos» …
É
verdade! Ainda não disse que, entre a louçaria da feira, ocupa especial e
mimoso lugar uma louça minúscula, de barro enegrecido, verdadeiros
brinquedinhos de boneca… pequenina, – tão leves e tão miúdos, que os não
sentimos nas mãos e que nas mãos dificilmente os retemos.
Esta
louça, afinal, é que dá sainete e nome à «feira».
São
os «pucarinhos», – nome geral de variados objectos de uso vulgar representados
em dimensões minúsculas, com graça deveras risonha: potes, cafeteiras, cabaças,
infusas, fogareiros, assadores, bilhas, baldes, caçoulas, sertãs, mealheiros,
etc. (…)
Os
«pucarinhos» são feitos, particularmente, em Bisalhães, e, como não é raro em
artistas populares que, de pais a filhos, sem interrupção, têm sustentado a
tradicional habilidade.
–
É arte que anda na casa! – disseram-me em Vila Real, acerca de uma família
assim.
O
brilho, que estes «pucarinhos» negros têm, é-lhes dado com mica. A mica é
moída, e o oleiro, por meio de uma cana, que molha de vez em quando, fá-la
aderir ao barro. E só estes «pucarinhos» avezam a honra de tal brilho!
Alguns
apresentam ornatos, muitíssimo singelos, – breves incisões oblíquas e
paralelas, ao redor, em fina barra anular.
*
* *
Os “pucarinhos” são oferecidos!
Como
em tantas outras feiras que pelo país se realizam, mas nenhuma (que eu saiba)
neste género, – na de Vila Real é uso trocarem-se «prendas». A esse uso jamais
faltam os namorados. E as «prendas» são ali «pucarinhos»!
Aí
está o motivo por que os gráceis «pucarinhos» vão passando, rapidamente, da
quitação em que os tinham os louceiros, para o peito das raparigas e rapazes,
do qual pendem, saltitantes, por laços de fitilhos multicolores.
E não faltará namorado que,
imitando inconscientemente a Camões, compare a delicadeza da sua Dionisa a um «pucarinho»
… de Vila Real.
Cláudio Basto, Viana do
Castelo, 1923 in Silva Etnográfica, Edições Marânus, Porto, 1939
(texto editado e adaptado)