Uma queda do Rio Corgo

Vila Real - uma queda do rio Corgo

(Cliché do rev. Carlos Simões d'Almeida)
Ilustração Católica, nº60 - 23 de Agosto de 1914

O Corgo

Eh!... Corgo, como te mostras hoje arrogante, neste Fevereiro de chuvas a resumirem em dois ou três dias de dilúvio todo o Inverno que passa!...

Assim, sim!... Peitalhudo, transbordas como um rio a valer, aos empurrões a toda a gente, cheio de força contra o garrote que te estrangula a passagem a que a topografia te obriga por entre penhascos de sonho e pesadelos de inferno.

Lá vais tu de gargomilhos espremidos, desde Sta Margarida à Ínsua, bazófias a disfarçar os medos com o vozear tonitruante das tuas cantigas roucas e nervosas que até parecem trovões em noite de tempestade. 

Quem é que, assim, te não teme a besta fera que levas junto ao peito por companhia?...

Contigo toda a porcaria de meio distrito e duma cidade que faz fétida a subserviência acomodatícia com que, no Verão, arremedas as linhas de água e regueiras de lima aos pastos bordados de salgueiros e junco.

São de cachoeira e espuma imunda, hoje, as águas de varrer e da barrela aos efluentes que levas como esgoto a céu aberto, pejadas de escorrências, mais repulsivas que arrogância de revolucionário comicieiro.

Olha o Tourinhas, como tu, num repente, a transfigurar-se também, agressivo, de alma grande e provocação, testinho de tudo quanto é imundície, escoando Mateus e os Torneiros num potencial de águas negras a derrotarem tudo quanto é vida de peixes.

E não vês também o Cabril, por aí abaixo, conspurcado de fossas e estações de tratamento, a conduzir envergonhado a sua caleira de dejectos mais trágicos e aviltantes que a desgraça de uma epidemia?!...

Quem te viu, ó rio da minha juventude, nascer desejado, dócil como um menino rei, tamaninho, quase que enfezado, lá por debaixo da Mijota, no Chão Grande das coives que era a horta fecunda da capital do meu berço, e agora te vê carregado do pivete que vai somando as penicadas de Fontes e de Telões em holocausto à decantada de um saneamento básico sem cabeça, nem tronco nem membros, até esquece as endechas que de ti ficavam por aquele Vale de Aguiar a servir de fundo ao gargalhar dos melros e gajos que caçava à fisga, com a «malta» do meu tempo!...

Quem, como eu, oh! Corgo, sentiu o sortilégio do teu trajecto, desde a Gralheira e Tourencinho até Piscais, Samardã fora sob as benções do S. Bento e de S. Tomé do Castelo na mirada de Benagouro, Escariz, Fortunho e Ponte, a cantar sempre, de pedra em pedra, de açude em açude, de moinho em moinho, a cristalinidade dos mais belos acordes de glória à pureza, não pode deixar de desesperar-se e lastimar o destino a que te votaram.

E já viste que toda a aspereza em que te esfarrapavas pelo Canhão de Relvas a vociferar como um herói que vai à guerra para dar e levar, vencendo distâncias, rápidos e cascatas onde se decantava purificada a oxigenação das tuas gotículas tendo sido o convite ao aproveitamento do teu manancial dulcíssimo que jamais, ao longo dos tempos, alguém terá aproveitado ainda que para rega que de ti nunca fizeram, até isso, nem confiança já dá para garantia da tua ambiência existencial?...

Ah! Rio das minhas desilusões, o teu leito insubmisso, outrora via rápida por onde o sadismo da corrente arredondava as esquírolas aos penedos que serviam o anteparo e o encosto das valeiras onde os barbos e as bogas faziam vida, é hoje a tumba fúnebre do desesperado desterro e maré viva da vazão das águas chilras que transformam o Douro no depósito da mais condenável inconsciência de todos nós...

... E cada vez menos chuva como a destes dois ou três dias de Fevereiro, para limparem, com a enxurrada das grandes invernias, a razão da existência da tua mais casta e saborosa poesia!...

A.Teixeira Ferreiras, in Tellus, Vila Real, nº9, Junho de 1982

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