A Fonte de Almodena | Cantos, recantos e encantos na nossa Bila (3)

A Fonte de Almodena

A Fonte de Almodena

“Por uma encantadora tarde dos primeiros dias de outubro de 1902, saí de Vila Real pela Fonte Nova e, tomando o caminho velho de Almodena, voltei à direita pela estrada da Tojeira.

Sentei-me para descansar numa das pedras soltas, colocada junto da pontezinha de madeira, que existe antes de chegar à quinta do Ramalhão, enquanto que meus filhos, infatigáveis como todas as crianças, saltavam, dum lado para o outro, o baixo muro dum pinhal vizinho.

Um passo pesado, vindo do lado da vila, fez-me voltar a cabeça, e a pouca distância vi uma mulher que, vergada sobre enorme carga de lenha, se aproximava de nós.

Ao chegar à ponte, pousou-a sem grande esforço numa pedra vizinha da minha, dizendo-me com simplicidade:

- Boas tardes.

Depois, olhando-me franca e investigadoramente, perguntou:

- A senhora é daqui?

- Não; sou de Lisboa.

- Ah! - tornou-me ela, com um sorriso nos lábios muito expressivo de desdém - Lá me parecia. Eu sou de Mondrões e raro de lá saio, mas conheço pela pinta os transmontanos.

- E então eu?

- Tem assim um ar a modos desenxabido... enfim, não tem cá o nosso ar... nem a nossa rijeza.

Eu ri-me

- Olhe que é o que lhe digo: bó! à minha idade não chega a senhora.

- Quantos anos tem?

- Não sei... mas bote-lhe as contas. Quando foi dos franceses, fiz cinco anos pelas cerejas... isto era o que dizia o meu pai, porque eu cá nunca os contei.  

Fitei-a pasmada. Tinha o cabelo todo negro e, se as faces eram engelhadas, uns belos olhos dum castanha vivíssimo pareciam ser um atestado de mocidade.

- Está brincando? perguntei.

- Credo! Por quem me toma?

- E com essa idade atreve-se ainda a carregar com tais fardos?

- Bó! Nada, não?! Uma vez não são vezes. Esta lenhazita deram-ma os meus netos. Eu só costumo vir à vila no dia 8 de setembro, à festa da Senhora da Almodena. Recordações antigas. Foi ali que me engajei com o meu homem e, de então para cá, ainda lá não falhei um ano; e mais ele já deve andar por vinte que morreu. Deus lhe fale na alma. Hoje vim ver um bisneto que me nasceu. A senhora já foi à festa de Almodena?

- Não, não fui.

- E à capela?

- Também não; estou aqui há pouco tempo.

- Pois deve lá ir. Aquela senhora é muito milagreira e dadivosa. Só à minha parte devo-lhe um ror de mercês: o meu casamento, a cura dos criados, a vida da minha Aninhas que esteve mesmo pronta com a espinhela caída, e quanto mais!... nem eu si. Faz-se ai uma rica feira de gado: é muito lindo.

- Hei-de ir ver.

- Dizia o nosso prior, que era muito lido e sabido em coisas antigas, que tinha sido um grande fidalgo cá da vila, Sottomayor, se me não falha a mimória, e mais a morgada de Ferreiros, com quem era casado, que a mandaram erguer. Havia junto daquela uma outra capelinha do Senhor da Agonia de que hoje só resta a cruz de pedra que separa o adro da estrada. Para mim, em Vila Real nem em todos os seus arredores há um sítio que lhe leve a palma.

- Pudera, tornei-lhe eu, está presa a ele por recordações.

- Bó! Não há velhos, senhora! Quando se pensa na mocidade todos somos moços e sentimos como sentíamos então.

Limpou os olhos à ponta do avental, e ficou silenciosa, voltada para o lado de Almodena, com os lábios entreabertos num sorriso, esquecida de mim e de quanto a rodeava.

Sabendo quanto é grato recordar e quanto fazê-lo alivia a pungente tristeza, inseparável da saudade, perguntei-lhe:

- Que ofício tinha o seu marido?

- Era sacristão do meu lugar. Um perfeito homem, com lindas falas, não desfazendo, e que lia que era um gosto ouvi-lo. Nem ele era para mim. Um santo, minha senhora... em quarenta anos de casamento não lhe ouvi nunca uma voz mais alta. Tive treze filhos: uns morreram, outros casaram, o mais mocinho foi para o Brasil e... fiquei só.

- Depois de ter tido uma família numerosa, é triste...

- Muito triste, mas eu também hei-de ir e já não falta muito. Lá em cima nos encontraremos todos, ajuntou reconfortada.

A certeza singela da sua fé fez-me inveja. Esta mulher tão simples, tão resignada, vivia dela: se lhe sugerissem uma dúvida, o que talvez não fosse possível, é crível que a sua alma, apesar de vigorosa, não suportasse o golpe, e que a morte viesse com a pressa que ela desejava, mas desacompanhada dos encantos que lhe atribuía.

Uma criatura que não conhece o tormento da dúvida pode e deve julgar-se feliz.

- Não falemos de mágoas, disse-me a velhinha com um sorriso cheio de bonomia, são tantas na vida quantos os dias; assim não canso em lembrá-las, empenho-me em esquecê-las. Olhe, continuou depois de ligeira hesitação, como quem receia tornar-se aborrecida e não pode resistir à tentação, se a senhora não enfada de me ouvir, vou contar-lhe como o sacristão de Mondrões se tornou meu conversado e um ano depois nós casámos.

- Diga, não há mulher a quem a história dum coração não interesse.

- Está visto: a gente não vive de outra cousa, depois do vinho e da broa. Pois foi assim: ele veio à festa de Almodena com o nosso prior, e eu com os meus pais, irmãos e mais gente do lugar. Há muito que ele me olhava com agrado, e eu sentia por ele uma certa aquela, mas nunca nos tínhamos dito nada. Quando a festa da igreja terminou, eu e mais algumas companheiras sentámo-nos em volta da fonte. Umas raparigas riam, outras olhavam os namorados, e todas estavam alegres. O meu João chegou à porta da capela, olhou em volta e, tendo visto onde eu estava, veio trazer-me um papel cheio de doces e ficou-se conversando.

- É lindo este sítio, pois não é? perguntou-me ele para dizer alguma coisa.

- É, respondi eu. E dizem que esta água, além de saborosa, sara todos os males.

- Todos não, disse ele, olhando-me dum modo, que me fez desviar a vista.

- Que dizem aquelas letras lá em cima? perguntei para disfarçar.

Ele leu:

O límpido cristal desta agua pura
Que a Virgem fez brotar nesta colina
As flores vivifica na campina
O corpo refrigera, as dores cura.

A imagem de Nª Sª da Saúde e a "quadra da fonte"

De mim para mim ri-me da quadra da fonte e achei divertidíssimo o respeito, quase religioso, com que a velhinha ma repetia, como se fosse o cúmulo da perfeição. Ela continuou:

- Não lhe dizia eu: as dores cura...

- Todas não, as dores do meu coração, por exemplo, só os teus olhos é que as podem curar.

- Então o remédio é fácil;

- Achas?

Não pude responder nada, mas abaixei a cabeça em sinal afirmativo.

- Não precisava. Quem cala consente.

- Bô! observou-me ela com um fino e brejeiro sorriso.

Depois continuou:

- Fez-se um bailarico, e cantou-se à desgarrada. O Manecas de Quintela, que há muito me trazia de olho e era moço rico e considerado, mas por quem eu não daria uma bilha de azeite, botou-me esta cantiga:

Mocinha do lenço verde
Com dois olhos cor de amora,
Que bruxedo traz consigo
Que toda a gente enamora?

Eu, que nunca fui daquelas que ficam de voz no bucho, tornei-lhe logo:

Não nego que o lenço é verde
Nego o tom que aos olhos dais,
Que castanhas e amoras
Nunca na cor são rivais.

Disse ele:

Soube emendar-me o dizer
Sem responder à questão,
Por que artes ou por que manhas
Me roubou o coração?

Vai eu:

Ninguém rouba o que não quer,
Nem que o topasse no chão;
O nome do meu amor
Não é Manuel, é João.

O meu homem estava em brasas. Mas os descantes pararam, agarrou-me por um braço, dizendo: - Anda daí ao senhor prior.

O senhor cura descansava em frente, num baixo onde morava um tio dele. Ao passar a ponte, cingiu-me pela cintura e beijou-me na boca.

Foi o melhor momento de toda a minha vida.

Senhor prior, disse o meu homem, mal se abeirou dele, queria dar-lhe uma palavrinha. O senhor padre, que falava com algumas pessoas gradas lá da sua amizade, afastou-se um pouco. Vai o João pediu-lhe para falar a meu pai.

- Então isso é de tanta pressa que o não podeis guardar para amanhã? perguntou sorrindo o nosso prior.

- É que tinha por bom agouro irmos da festa da Senhora prometidos e, quando voltássemos cá para o ano...

- Está bem. Eu falarei com o Zé do Corgo, - era o meu pai, - e creio que ele nada terá a dizer contra. Assim foi. Quando regressámos ao meu lugar, João acompanhou-nos, e os meus velhos tiveram grande satisfação de me prometerem a um homem tão prendado. No ano seguinte casámos à boca da manhã na igreja da minha terra e depois viemos à festa. Há quanto tempo isto lá vai!...

- Parece sempre que foi ontem.

- Bó! disse ela, olhando em roda, é quási noite e ainda tenho de andar. É isto: em me pondo a dar à língua...

E tentou erguer o feixe de lenha. Ajudei-a a retomá-lo.

- Adeus, senhora, e sabe o que lhe desejo?

- ?

- Que tenha na velhice destas recordações, que fazem esquecer do tempo e nos dão sempre vinte anos.

- Obrigada.

- Se eu chegar a Setembro cá venho à festa. Ver-nos-emos?

- Se eu cá estiver, com certeza.

Retomou o cajado e, depois de saudar os pequenos alegremente, desapareceu na curva da estrada, no seu passo largo, pesado e firme. Segui-a com o olher humedecido. As coisas alegres comovem a alma, exactamente como as tristes. É que, vendo-a afastar-se, tudo nela me dizia: se Deus existe, esta mulher resignada e simples, deve chegar a Ele tão naturalmente como a água do rio se vai lançar no mar.

Chamei as crianças e voltámos.

Tarde encantadora! Não havia vento, o ar estava límpido e o sol desaparecera atrás do Monte da Forca, em toda a majestade da sua incomparável beleza. Homens e mulheres regressavam da vindima cantando alegremente a vareira, e umas lavadeiras atrasadas no seu labor batiam roupa nas pedras entre risadas e chistes junto à ponte do Cabril. Era um quadro digne de Carlos Reis ou Malhoa. Apressei o passo e desviando-me da estrada, dirigi-me à escada que leva à capela de Almodena.

"escada que leva à capela de Almodena"

- Aonde vai, minha mãe? perguntavam os pequenos curiosos.

- Ver a quadra da fonte.

Apesar da luz ser já muito frouxa, consegui ler os versos do anónimo poeta de Almodena.

Rir-se-ão, talvez, mas naquela mesma quadra cuja ingénua chateza me fizera sorrir quando, sem alterar uma única sílaba, a velha ma repetiu, eu achei a imensa poesia duma alma tão habituada a conseguir que a palavra exprima todo o seu sentir, mas cheia de altos e nobres pensamentos. Curvei-me reverente ante o obscuro poeta transmontano. É que a beleza melancólica daquele agonizar do dia emprestava a sua magnificente grandeza a quanto o rodeava.

Os mil sussurros do campo tiveram sempre mil atractivos para os meus ouvidos, mas nessa tarde, em que a terra parecia querer rivalizar com o céu, sentia-me inebriar intensamente dos seus acres perfumes, a ponto de pensar (que criancice!) que era bem bom viver.

Voltámos a casa, onde à luz dum candeeiro, nos esperava o jantar a que as criadas, pela hora, chamavam ceia. Contei durante ela, rindo, os episódios da minha expedição daquele dia, episódios que eu não devia esquecer, porque todo aquele que estuda, comparando com verdadeiro interesse as belezas da natureza e das almas, guarda avaramente a lembrança dos raros momentos em que as encontra em perfeita harmonia. Lamento não ser pintora. Aquela mulher era a melhor figura que se poderia reproduzir em tal quadro: tinha a beleza simples e grandiosa da paisagem transmontana e parecia simbolizá-la.

Maria O'Neill”

A capela onde se venera Nª Sª de Almodena, e a fonte (agora totalmente seca!)

In "Brasil-Portugal", nº275 - 1910_1911 (texto editado) | Imagens do "Escarpas do Corgo" (c)

A Romaria em honra de Nossa Senhora da Almodena

“Esta festa era uma referência para as gentes de Vila Real, particularmente para as populações rurais, muito crentes em Nossa Senhora da Almodena.

Também a sua feira era importante, já que, pela sua centralidade, juntava vendedores e compradores das freguesias vizinhas.

Esta festa e o seu dia - 8 de Setembro - eram uma referência no calendário agrícola da região e marcava:

- o fim do uso cíclico de certas águas de partilhada (que iam do S. João à Srª da Almodena);

- o fim das merendas (que tinham começado a 25 de Março);

- o fim do descanso a seguir do almoço (que havia começado a 3 de Maio).

Era também um marco-limite para o estado de certas culturas:

- o milho não deveria ser escanado depois da Srª da Almodena;

- a erva, semeado no meio do milho, que servia para alimentar o gado no Outono e Inverno, no dia da Srª da Almodena já devia estar nascida.”

Informações disponibilizadas pelo Dr. António Conde. Os nossos agradecimentos.

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