Vila Real de Traz os Montes vista em 1907
Vila Real, como muitas das maravilhas
que a antiguidade legou aos séculos, desde a figura errante de Homero,
vagamente afirmada nos gastos mármores de Paros, à ânfora esbelta de ouro e
coral em que Cleópatra saciava a ardência dos seus lábios de deusa amorosa,
vive para nós, relativamente à sua origem, meio envolta na indecisão nebulosa
das probabilidades e das lendas.
E, no entanto, Vila Real não tem a idade longínqua de
Homero, nem os largos anos da ânfora preciosa da velha dinastia dos Lágidas.
A sua idade é
quase moderna - não vai além do domínio da fé romana no solo feroz em que
nasceram, em que cresceram e engrossaram os troncos fibrinosos das naus da
Índia.
Vila Real, ao pé das minúsculas cidades
etruscas, acocoradas na suavidade das colinas abundantes, sonhando com os seus
deuses sanguinários de outrora, está apenas na infância da sua vida risonha a
pacata.
A bisbilhotice da História, porém, ao vê-la nascer, tão espantejada de ares, tão rica de vegetação, esqueceu-se de registar, nos seus papiros vetustos, o ano do seu nascimento, o nome do senhor que a edificara sob o bafo gelado e tonificante do Marão.
De modo que
hoje, no começo do século XX, não podemos fixar uma data, um reinado que nos dê
a medida exacta e infalível da sua fundação.
Chafariz em Vila Real |
Mas fosse ou
não fosse um dos subúrbios de Constantim
ou de Ponte, as prováveis capitais
da Ponónia [sic]; fossem ou não os seus primeiros muros erguidos por D. Sancho II, planeados por D. Afonso III, ou construídos por D. Dinis - hipótese esta última
sustentada pelos seus mais eruditos Plutarcos - o que é certo é que Vila Real
está em plena florescência da mocidade.
Nem sequer
assistiu à tropeada tumultuosa do sarraceno, perdido o seu benigno domínio
entre o Tejo e a Galiza, fugindo à espada cristã, sequiosa do seu sangue
ardente.
A fundação de Vila Real é, pois, recente; a sua
existência é historicamente banal.
Não tem a
engrandecê-la a tradição das idades remotas, o fulgor dum grande interesse proveniente
ao menos duma obra, dum facto assinalado nos destinos da nação.
O mais velho
muro dos mais velhos dos seus edifícios conserva ainda, para o olho
arqueológico dos investigadores sagazes, os vestígios quentes e suados das mãos
calosas que o aparelharam e cimentaram.
C. 1907 |
Isto quanto à
sua idade - que não chega a oito fugidios séculos.
Das suas
belezas naturais nem eu si o que escreva, que não esteja dito acerca de todas
as povoações deste e de outros países, grandes e pequenas, desde as mais
formosas até às menos dignas de registo.
Todas elas,
invariavelmente, por uma genuinidade copiosamente louvaminheira, possuem
panoramas incomparáveis, a vegetação luxuriante de certas regiões exóticas,
produtos alimentícios de qualidade superior, e um céu anilado, o eterno céu de
anil sem nuvens que só pode comparar-se à doçura do céu da Itália e da
maravilhosa Grécia.
Mas Vila Real
está, não há dúvida, sob aquele aspecto, em condições bem excepcionais.
É uma terra
soberba de horizontes, de perspectivas variadas, ora cheias de grandeza
imponente, ora suaves e risonhas como um trecho cultivado de jardim.
A sua maior
beleza está, inquestionavelmente, na sua posição topográfica.
Assente sobre a
extremidade dum vasto e fértil contraforte do Mezio, domina quase toda a
extensa região que se desdobra principalmente para o norte para sul, até se
perder na mancha violácea daquela serra e das serras da Beira Alta.
Dentre estas
destacam-se os prolongamentos da de Temude, com os seus flancos
convulsionadores descendo até ao rio Douro, íngremes e verdejantes, semeados de
casais, muito claros, muito alegres, e a ermida da Senhora dos Remédios quase
no alto, como uma nódoa esbranquiçada, meio diluída no fundo longínquo da
perspectiva.
Os morros do
Mezio, vistos do Calvário, dão-nos a ideia impressiva duma velhinha a alvejar,
- a capela de S. João de Estremo - perdida entre as curvas colossais das ondas
embravecidas.
Depois, a
seguir ao Mezio, pelo poente segue a Picarreira, semelhando um enorme cetácio
adormecido, com os seus cerros adustos e escarpados, vincados de longe a longe
por profundas rugas que o desgelo de milhares e milhares de invernos tem
rasgado na sua face pedregosa.
As povoações
sucedem-se, por toda a sua vertente inundada de sol, cercadas de tabuleiros de
relva, de campos que trepam ao cimo da encosta, numa prodigiosa diversidade de
tons, desde o verde tenro e vivo dos terrenos alagadiços aos verde fuliginoso
da urze.
Envolvendo as
povoações e os campos, estendem-se por toda a serra matas cerradas e fortes de
carvalhos, de pinheiros, como formidáveis exércitos compactos a caminho dos
cerros mais altos, numa ânsia persistente de liberdade e de luz.
Hospital da Misericórdia - Divina Providência |
E como último
remate desta cadeia prodigiosa de montanhas, a serra do Marão avança, gigantesca e triste, do flanco sul do
Picarreira, mostrando o dorso colossal, irregular, muito calvo, ora brilhando
ao sol, recoberto de mica, como um velho metal fosco, ora reflectindo a alvura
fria da neve, com as cristas agudas perdidas na cabeleira branca das nuvens.
Uma variedade
imensa de panoramas se desenrola em volta, num círculo vastíssimo em que os
contrates são os mais flagrantes e intensos, indo da elevação fantástica e
caprichosa do penhasco agreste à doçura rumorosa e idílica do vale exuberante,
com as suas hortas frescas, os seus pomares viçosos, a serenidade do seu ar
macio, que refresca e consola os pulmões.
E a vila
ressalta esplendidamente dentre este cenário variado e rico, cheia de luz e de
alegria, soberba de graça ao cimo dos tabuleiros de vinha fresca e de
sabugueiros frondosos, que a cingem e que descem, quase a prumo, numa altura de
centenas de metros, até ao leito estrangulado e rochoso do Corgo e do Cabril.
Vila Real não
possui monumentos arquitectónicos de vulto, nem sob o ponto de vista arqueológico, nem como manifestação
artística.
A época em que
foi fundada, além de relativamente recente, não se prestava a arrojos e
empreendimentos de Arte.
Estava-se em
pleno período da reconquista, sob a influência cavalheiresca e guerreira da
Idade Média, os espíritos absorvidos pelo ardor das suas lutas e pela densidade
das suas trevas - apenas rasgadas, numa ou noutra cidade, pela refulgência
espiritual e germânica do gótico.
Não se encontra
através das suas ruas, das suas praças um único edifício grandioso e forte, ou
sequer duma idade tão remota que recue a imaginação para as épocas feudais da
sua origem, num sonho evocador de todo o seu passado.
Apenas o
palácio, em ruínas, dos marqueses de
Vila Real se destaca do tipo uniforme e banal das suas construções.
Ruínas do palácio dos marqueses de Vila Real |
Muito afastado dos muros da vila velha, de construção muito posterior, pois que as janelas da fachada que dá para o poente são puro estilo manuelino, como de resto toda essa fachada, desde os alicerces ao dentado esbelto das ameias, ele revela uma tentativa que infelizmente não se reproduziu.
Ficou só, completamente só, entre o casario desgracioso e acanhado
que o cerca e a monotonia rígida e pesada dos conventos e das igrejas.
A própria Capela Nova, com a sua vistosa
frontaria sustentada em quatro poderosas colunas de granito, com os seus
arabescos em baixo relevo, com o S. Pedro lá ao alto, enorme e denegrido, a
tiara pontifical, a cruz de Trea Regno na mão direita e o manto
de pedra agitado num movimento de profecia, não passa duma obra rococó e
inestética do fradesco século XVIII.
Capela Nova |
E agora que me
referi ao palácio dos marqueses de Vila Real, vem a propósito um facto que
revela o mais profundo desprezo ou a maior irreverência pela integridade
estética daquele edifício.
Uma parte da
fachada, a mais perfeita e completa, com a sua larga janela central em colunas
retorcidas, muito delgadas, numa elegância leve de espiral e o escudo de Vila
Real, no remate superior, entre florões delicados, foi reconstruída há uns
quatro ou cinco anos.
Limparam-na do
musgo secular, substituíram cuidadosamente as ameias quebradas e cobriram-lhe o
telhado - parece uma ironia do século XX lançada à face veneranda do século
clássico do nosso esplendor - da mais berrante telha de Marselha!
É como se
ressuscitássemos o próprio rei Venturoso, com o seu ar austero de senhor
absoluto, o seu gibão escarlate, o calção esticado apertando a meia grosseira
de lá, e sobre a cabeleira anelada lhe plantássemos um luzidio chapéu alto,
marca Costa Braga.
A telha de
Marselha está destinada a representar o mais dissolvente papel em face da arte,
na minha província.
Chega a gente a
ter vontade de se encarnar, por um momento ao menos, no espírito católico dum
pontífice romano, para a fulminar sob a inclemência duma excomunhão que a
relegasse destes reinos ortodoxos.
Pois se até a
utilizaram, ultimamente, para cobrir a capela romana ou árabe da Senhora de Guadalupe, na antiquíssima
povoação de Ponte - uma das supostas capitais da Panónia!
E a verdade é
que a maior parte dos desacatos que em Vila Real se têm cometido, e continuam a
cometer, contra a coerência estética daqueles monumentos e contra a beleza
geral da terra são devidas aos seus munícipes que, salvas as raras e
consagradas excepções de sempre, não ligam a menos importância a tais assuntos.
Disto são prova
não só aqueles dois factos, mas ainda o bairro que começa a construir-se junto
da estação do caminho-de-ferro.
Estação de Vila Real. Ao fundo a Serra do Marão coberta de neve. |
Devendo
obedecer a um plano geral harmonioso e perfeito, tem sido deixado ao arbítrio,
ao gosto inculto e conforme a máxima comodidade de cada um.
Assim, num
bairro inteiramente novo, que podia constituir dentro em pouco um trecho da
cidade moderna e elegante, denunciando ao menos um manifesto desejo de
solidariedade com as tendências artísticas da época, os prédios vão-se
acumulando na mais confusa desordem.
E o pior é que
não se encontra entre todos eles um só que se imponha pela estrutura
arquitectural, ou pela fidelidade a um tipo definido.
Uns
atarracados, como que com medo de se erguerem no ar puríssimo e luminoso, com
telhados multiformes e frontarias de casa de cartão colorido.
Outros com o
seu ar bonacheirão e pelintra de estações ferroviárias provisórias e fortes
doses de tinta cor-de-rosa.
Outros ainda
não indo além de microscópicas cantinas destinadas ao comércio barato de vinhos
e petiscos a retalho, e todos eles, cobertos à maneira de chalêt, são dum aspecto desgracioso e incaracterístico que causa
verdadeira dor.
Que belíssimo
bairro ali se podia edificar, se a essa obra se associasse um pouco de amor
pela arte de conceber, de delinear e de construir...
Porque Vila
Real, nem eu sei bem porque, talvez pela sua situação magnífica, talvez pela
alegria esparsa que irradia da própria exuberância dos seus encantos naturais -
o que lhe dá a graça duma mulher muito fresca e muito nova, sempre risonha - talvez
ainda pela disposição das suas ruas irregulares, mas largas e suaves, abertas
amplamente à grande luz dum céu lavado e glorioso, e ao ar vivificante das suas
montanhas, oferece no seu conjunto, apesar de tudo, a impressão mais
sugestivamente agradável.
Calcule-se,
portanto, o que ela seria daqui a alguns anos, com um bairro novo em que a
linha arquitectural das construções e o traçado das ruas, largas, regulares e arborizadas,
correspondessem às exigências da arte e do bom gosto...
Seria, sem
exagero, uma das terras mais lindas de Portugal.
(...) Continua com texto e imagens sobre Augusto César, jornalista, fundador de O Transmontano.
Coimbra,
24-3-1907
Alberto de Sousa Costa
Uma criada em Vila Real transportando água |
Ponte de Almodena |
Fonte:
"Ilustração Portuguesa", nº77 - 1907