O Santo Soldado: José Custódio ou António Gonçalves Pegueira?
Completam-se, no próximo dia 12 de Maio de 2022, 209 anos “em
que foi arcabuzado no lugar de Santa Iria, caminho da Timpeira,
um soldado do Batalhão de Caçadores nº 5.
O povo considerou-o inocente e chamou-lhe santo. O próprio
governo da Regência lhe perdoou o crime por que foi sentenciado, embora o
perdão não tenha chegado
a tempo de lhe poupar a vida.
Quando queremos apurar estes factos, encontramos dificuldades
insuperáveis. Na época praticamente não havia
imprensa e a eventual documentação coeva do
assunto foi-se perdendo, pelas mais diversas causas.
Só a título de exemplo, os poucos testemunhos que existem (na
própria Capela do Santo Soldado e na Igreja da
Misericórdia) referem um nome, José Custódio, de São Pedro-o-Velho, concelho
de Mirandela, que tudo leva a crer que
não seja o verdadeiro, embora seja o que o povo lhe atribuiu.
Por isso, ninguém se arrisca a escrever a história sem lhe
apor a palavra lenda.
De facto, este caso tinha todos os
condimentos para se transformar numa lenda. E
assim se foi construindo uma história que acabou por se confundir
com a própria lenda.
Escreveram sobre o assunto, entre outros, Júlio Teixeira, na obra "Da Terra de Panoyas" (1946), e Lourenço Camilo Costa, no jornal "A Voz de Trás-os-Montes" (13 de Maio
de 1982) e na revista "Tellus" (n° 21, Outubro de 1993).
Este último
investigador trouxe um contributo ausente em Júlio Teixeira: a localização da
sepultura do militar na Igreja da Misericórdia, que encontrou no "Livro da distribuição das sepulturas da Igreja da Misericórdia".
Júlio Teixeira devia desconhecer este elemento, dado que o não menciona quando se refere à
acta da Misericórdia (que diz tratar-se do único documento da época referente ao soldado arcabuzado)
em que se indicam os custos com os preparativos e funeral do soldado António
Gonçalves Pegueira, da cidade de Castelo
Branco (e não José Custódio).
A confusão entre António
Gonçalves Pegueira e José Custódio
deve-se possivelmente, como aventa Lourenço Costa,
a que terá havido dois fuzilamentos diferentes
em datas próximas um por roubo, outro por deserção - que a imaginação popular terá confundido entre si.
O próprio Camilo Castelo Branco, no romance "O
Esqueleto", de 1865, conta brevemente a história do Santo
Soldado, dando-o como condenado por desertor no ano de 1811.
O misto de história e lenda pode, na versão mais consensual,
resumir-se da seguinte forma:
Quando em 1813 se encontrava em Vila Real um destacamento do Batalhão de Caçadores 5, de Castelo Branco, escalado para o serviço de vigilância na fronteira e
defesa de algumas povoações de certa importância, em substituição do Batalhão de
Caçadores 3, que também aqui tinha estado aquartelado e nessa altura se
encontrava em Espanha, a combater na
Guerra Peninsular.
Uma manhã, quando o prior de São
Francisco se preparava para rezar a missa na Igreja do Convento, verificou
que o sacrário tinha sido violado e faltava o
cálice (mais provavelmente, a píxide).
Diligencia imediatamente junto das autoridades
civis.
A voz pública acusa algumas praças de Caçadores 5 que haviam sido vistas na
noite anterior à
descoberta do roubo junto da Quelha de
Codessais, próxima do convento.
A devassa transita então para o foro militar.
Para espanto geral, o cálice é encontrado na mochila do soldado António Gonçalves Pegueira, que
imediatamente recebe voz de prisão.
Mas a verdade é que esse soldado tinha uma boa imagem local e o povo
recusa-se a acreditar que fosse ele o autor do
roubo.
É avisado o pai, que vem a Vila Real. Falando com o filho, este declara-lhe
a sua inocência. O pai parte para Lisboa, para
obter na corte o perdão.
Entretanto o processo avança nos seus trâmites, o Conselho de Guerra reúne
e condena o soldado à morte.
A Mesa da Misericórdia, como era hábito, conforta o condenado. Coloca-lhe um oratório na cela.
Quando António Pegueira é executado, em 12 de Maio de 1813 (uma quarta-feira),
no local que mais tarde ganharia o nome de Arcabuzado,
o corpo é entregue à Santa Casa da Misericórdia de Vila Real, sendo sepultado na sua
igreja.
Quando o pai voltava de Lisboa com o perdão, já às portas de Vila Real, em Almodena, ouve a descarga e logo tem o pressentimento de que o filho foi morto. Ao mesmo
tempo, o seu cavalo rebentava de cansaço.
Ao vestir o cadáver para o enterramento, verifica-se que fora atingido por
uma única bala.
Logo se levanta a suspeita de que essa bala seria
do verdadeiro autor do roubo, que seria pois um dos elementos do pelotão de
fuzilamento.
Passados poucos dias, um outro soldado (ou, noutras versões, um ajudante de
um moleiro da Ínsua) de alcunha o "Preto", movido pelos remorsos,
confessou o roubo e que tinha escondido o cálice num buraco das muralhas junto
à Porta
Franca, no lugar hoje chamado Buraco
Sagrado, tendo-o posteriormente colocado na mochila de António Gonçalves Pegueira, alarmado pelo facto de que os machos e cavalos dos moleiros da Ínsua
se atiravam para o chão ao passarem junto ao esconderijo e só depois de
muito fustigados prosseguiam caminho, o que poderia constituir sinal de que o roubo acabaria por ser descoberto.
O "Preto” foi julgado e condenado a ser enforcado no local chamado Monte da Forca.
O povo anónimo de Vila Real acreditou sempre na inocência do arcabuzado e
desde muito cedo começou a chamar-lhe santo e a prestar-lhe culto na sepultura
(que teve mais tarde um gradeamento que seria posteriormente retirado).
Em 1854 foi construída uma capela no local da execução. (Essa capela foi
recentemente [finais do séc. XX, inícios do séc. XXI] restaurada e ligeiramente deslocada.)
Aí foi colocada uma pintura que descreve o fuzilamento e uma caixa de
esmolas.
Esta capela sucedeu a um alpendre de
madeira, que cobria uma cruz tosca à qual estava preso o referido quadro, de
que, em 1943, seria feita uma réplica
pelo pintor amador Fernando Nóbrega.
Também no cruzamento da Timpeira
existiu uma memória de tipo alminhas, com uma representação pictórica do acontecimento e uma caixa de esmolas.
Fonte: “História ao Café”, nº 94 – 14 de Maio de 2002 (texto editado e
adaptado)
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