"Tão grande é o Marão, mas não dá palha nem grão."
Marão
Tentar
descrever o Marão é o mesmo que
pretender resumir os Lusíadas num soneto ou copiar em
miniatura as tábuas de Nuno Gonçalves. Impossível.
Vai-se pela estrada de Amarante a Vila Real,
olhando, com espanto, a imponente e macia ondulação da montanha - e não se diz
palavra.
Apeamo-nos do
carro, na esperança de que, parados, o espírito se esclareça e a compreensão se
abra para a paisagem. Impossível.
É tudo grande
demais, belo demais, impressionante demais.
Os adjectivos
que saem, quando saem, são superlativos e soam a insignificantes. O melhor é ficar
para ali, sem palavras nem gestos, humildes e com a alma tensa, como os ascetas
que esperam a graça divina.
As horas vão passando,
rápidas; as formas, as cores, os cambiantes da luz vão-se infiltrando em nós, brandamente
- e tudo quanto está em nós se afasta e lhes dá lugar.
É assim que eu
guardo para sempre a lembrança de uma tarde passada na serra, na companhia de Pascoaes.
Não há melhor cicerone que um poeta. Só ele sabe
mostrar o que mais significa, o que mais importa: certa mancha violácea que se
insinua na penumbra e galga, como uma onda, o dorso da colina: certa nuvem
alvíssima que pousa no sol, como um penso numa ferida; certa expressão
dolorosamente humana que adquire o perfil duma rocha ou duma árvore...
A paisagem só
tem significado para os poetas. A paisagem não é, mesmo, outra coisa, senão a
expressão poética da Natureza. Por isso, só os poetas a entendem; só eles
reconhecem nela as dedadas de Deus e a formas em que se moldaram muitas das nossas
feições.
Diz Pascoaes, na sua Arte de ser português: «Quem atingir as alturas do Marão, o seu
píncaro mais elevado (1.4OO metros acima do mar) onde está edificada a pequena
ermida da Senhora da Serra, avista, para as bandas do nascente, a escura e montanhosa
região de Trás-os-Montes; e, para os lados de noroeste e nordeste, a paisagem verdejante
e alegre do Minho.
Depois, aproximado o olhar, descobre, nesta
mesma direcção, as terras vizinhas do Tâmega, que participam de Trás-os-Montes
pelo acidentado do terreno, e do Minho pelo verde e alegre colorido dos seus
vales e pradarias.
O doloroso drama transmontano e o bucólico
idílio minhoto fundem-se, na região do Tâmega, numa paisagem original que é o
próprio busto feito de terra, árvores e fontes, do génio dos lusíadas».
Nenhum homem da
ciência diria isto, porque isto só é evidente e compreensível aos olhos dos
poetas.
No Vale de Campeã parámos, para almoçar.
O sol
incendiava uma lomba da serra, enquanto noutras, em planos mais distantes,
fazia escorrer riachos de ouro, cascatas de topázios, catadupas de violetas.
Nada me deu,
nunca, uma sensação tão plena de refúgio, como aquele ninho de cinco ou seis
casinhas isoladas, lá em cima, nos píncaros.
Um pequeno pastor
que passou por nós ensinou-nos que o lugar se chama Cotorinho.
Quantas vezes
invoco este nome, quando a cidade me desperta a nostalgia do silêncio! Cotorinho... Ficou em mim, para sempre.
Só não me
recordo do nome daquelas árvores, de copas rendilhada e levíssimas, como espuma,
à sombra das quais acampámos, para comer.
Mas Pascoaes
sabe. Como também sabe que o vinho verde do nosso farnel estava bem longe
(o que nos fez pena...) de ser o melhor da região.
Texto de Carlos
Queiroz | Fotos Beleza
In “Panorama”,
nº05-06 - 1941